terça-feira, 2 de julho de 2019

A cantora

Há algum tempo, encontrei na Amazon uma biografia romanceada de Ana Magdalena Bach. É um gênero literário com tradição: existe uma biografia ficcional do século XIX que mereceu alguma fama. Die Sängerin, contudo, tem outra intenção. O trabalho de Eleonore Dehnherdt, uma pedagoga alemã que vive de sua pena, é construir uma biografia tradicional, usando o material documental existente e a pesquisa contemporânea sobre vida cotidiana. É esse material que permite falar como se fazia uma roupa de mulher no início do século XVIII, como se organizava a vida doméstica, etc. Com a passagem das páginas, contudo, as limitações do trabalho vão ficando encantadoramente claras. Ana Magdalena, por exemplo, esteve grávida ou amamentando enquanto foi fértil e viveu como João Sebastião. Como descrever essa experiência subjetiva e intensa, sem apelar a algum clichê do século XXI? (O livro foi publicado originalmente em 2007). Como é passar vinte anos grávida ou amamentando? Qual o espaço que tal realidade deve ter em uma biografia? E a morte de tantos filhos? Como escrever realisticamente sobre tais fatos, com o ponto de vista do século XXI?

Quando se aproxima o fim, os dilemas da biografia de Ana Magdalena ficam ainda mais candentes. Depois da morte de João Sebastião, praticamente não existem informações sobre sua viúva, que passou a viver em algum aposento na casa de um velho amigo, até sua morte em 1760. Nada sabemos, só existem especulações, sobre dez anos de vida e de lembranças. Como tantos de nós, Ana Magdalena desaparece da História quase sem deixar vestígios, nem lembranças. Há algo de profundamente triste em tudo isso.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

As canções do Sul

Qu Yuan é uma figura tradicional da mitologia política e literária da China. A coletânea de poemas que carrega seu nome pertence ao mesmo domínio e seu significado é comparável ao da poesia grega dos tempos clássicos. No Ocidente, a democracia chocou a mente dos homens; na China, foi o Império. O bom governo é assunto de uma disputa no Ocidente; na Oriente, é uma questão moral. A tirania é sempre péssima, ainda que por motivos diversos. A coletânea que tenho é a tradução de David Hawkes, o tradutor do Sonho, e faz jus aos grandes momentos do livro. Li sao é a peça óbvia na coletânea, mas os poemas que querem chamar as almas de volta são também encantadoras.

"Quando subi ao esplendor dos céus
De relance vi, lá embaixo, minha velha casa,
O coração do cocheiro pesou e os cavalos por saudade
voltaram suas cabeças e se recusaram a seguir"

Volta, minh´alma.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Política e expertise

Andei colocando leituras em dia, incluindo um livro já antigo sobre expertise em ambiente legislativo. Kevin Esterling era professor da UCLA em Riverside quando publicou The Political Economy of Expertise, pela editora da Universidade de Michigan, em 2004. A essa altura da vida, já sei de cor como esses livros são escritos e os casos estudados são antigos: o caso do Clean Air Act no governo Bush, o caso dos vouchers educacionais e o caso das HMOS, a partir da proposta original de Nixon. A conclusão fundamental é que o processo legislativo americano, visto do início do século XXI, podia aceitar de forma relativamente ampla o insumo da ciência, exata ou social. O seu impacto variava, dependendo do assunto e da qualidade dos atores sociais envolvidos, mas a conclusão geral do trabalho é positiva. Não por motivos ingênuos, mas porque as partes interessadas podem encontrar na ciência uma base legítima e politicamente forte para sustentar suas posições. Mesmo quando são políticas, no sentido amplo da palavra.

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Purgatorio Canto VIII

"Era già l'ora che volge il disio
ai navicanti e 'ntenerisce il core
lo dì c' han detto ai dolci amici addio."

versos 1-3

"Per lei assai di lieve si comprende
quanto in femmina foco d’amor dura,
se l’occhio o ’l tatto spesso non l’accende."

versos 76-78



domingo, 21 de abril de 2019

Purgatorio, Canto XXI

"Sì mi diè, dimandando, per la cruna
del mio disio, che pur con la speranza
si fece la mia sete men digiuna. " 

37 e ss.


"De la mondizia sol voler fa prova,
che, tutto libero a mutar convento,
l’alma sorprende, e di voler le giova. "

61 e ss.

"Da pureza, só o querer dá prova
que, livre, convencido de mudar,
à alma surpreende, e de querer o consegue".


"Già s’inchinava ad abbracciar li piedi
al mio dottor, ma el li disse: "Frate,
non far, ché tu se’ ombra e ombra vedi".

130 e ss.

"e tratando l´ombra come cosa salda".

136.


domingo, 18 de novembro de 2018

Após as eleições

Escrevo por mero compromisso, após meses de confusões eleitorais. Tudo terminou bem, como previsto, o que é bom para os modelos e bom para os negócios. Terminei a campanha em Paris, à sombra da Madeleine.



segunda-feira, 16 de abril de 2018

As coisas que não li

O Defensor da Paz (1324) deve ser o único clássico da política que ainda não li. Deveria ter feito isso na pós, mas preferi ler o Polycraticus. Por isso, mandei vir o ensaio clássico, publicado em 1920, do professor de História Eclesiástica de Harvard, o venerável Ephraim Emerton, para preencher parcialmente a lacuna.

The Defensor Pacis of Marsiglio of Padua. A Critical Study traz tudo que é importante saber sobre a bio e a obra do grande médico/jurista, companheiro de confusões de Guilherme de Ockham e Luís da Baviera. É, ao mesmo tempo, uma denúncia do abuso do poder do Papa e uma boa exposição da teoria do Imperador como representante do Povo. Uma ideia poderosa, como se pode deduzir com facilidade. A descrição da disfuncionalidade do Poder Espiritual é particularmente pungente: vou ter de comprar e ler o tratado de Marsílio (1275-1342).